24 de jul. de 2014

Alves e Ribeiro

Em meus sagrados, amados e privilegiados tempos de estudante na Unicamp, eu idolatrava Rubem Alves. Eu e mais um monte de gente, claro. Ele dizia coisas bonitas, que faziam pensar e faziam sonhar; era uma prosa simples com significados profundos. Para quem estava começando a descobrir o amor pelo pensar, pela reflexão sobre o que move as pessoas e(m) suas relações, pelo sentido da vida, com o perdão da expressão já tão gasta...

Uma das coisas que Alves escreveu foi que muitas pessoas se apaixonam mais pelo amor do que pela pessoa amada. Apaixonados por amar, sem enxergar tão bem o objeto do amor. Também houve a história do pássaro, alegoria do ser amado, o qual não poderia ser mantido próximo em uma gaiola fechada, como propriedade. A gaiola precisaria estar sempre com a portinha aberta para que o pássaro, mesmo sabendo da liberdade de poder voar para longe, ali permanecesse por pura vontade. O pássaro deveria estar ao lado porque queria e não porque não tinha outra alternativa...

Depois de uns anos, acho que já formada, "briguei" com Rubem Alves. Ele publicou uma crônica no jornal de Campinas exaltando o prazer e as delícias de poder amar sem estar preso a um casamento. Acredito que mencionava um novo amor e ontem, ao deparar com a notícia de que morreu casado com sua única esposa, me espantei. A crônica fazia a apologia de uma paixão tão pueril e irresponsável que só poderia significar o fim do casamento.

Mais tempo passou, ficamos mais velhos, Alves e eu. E o tempo, senhor de todas as coisas, felizmente nos permite relativizar muitas dessas coisas...

Há poucos meses, assistindo a uma entrevista com Alves na GloboNews, reconciliei-me com o professor. Apesar de ele ter especulado um tanto, de ter "cometido" vaidades e de ter produzido umas historinhas fáceis de vender e assimilar, naquela ocasião, já passados anos das minhas convicções juvenis, identifiquei nele a alma genuína dos pensadores e educadores, pessoas que querem deixar algo, continuar vivendo por meio de suas palavras.

Resgatei a visão do professor e pensador, que disse: "Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim affetare, quer dizer 'ir atrás'. O 'afeto' é o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o 'Eros' platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado." (in: Lições do velho professor, p. 98).

Num texto intitulado Ensinando a tristeza (oh, que heresia moderna!), ele homenageia uma paranaense que é sublime descoberta desde que habito as plagas de lá: "Fui apresentado à poesia de Helena Kolody poucas semanas atrás. Foi uma descoberta que me trouxe alegria. Não porque seus poemas sejam alegres. Todos eles têm uma pitada de tristeza. A Adélia [Prado] sabe que o que é bonito enche os olhos d'água. A beleza vem sempre misturada à tristeza. (...) Os poetas me entendem. A poesia nasce da tristeza. 'Mas eu fico triste como um pôr do sol quando esfria no fundo da planície e se sente a noite entrada como uma borboleta pela janela', escreve Alberto Caeiro. E conclui: 'Mas minha tristeza é sossego porque é natural e justa e é o que deve estar na alma...'. Tristeza natural e justa, que deve estar na alma!
[...]

E aí se foi o João Ubaldo também. Escrachado, debochado, um tanto devasso e representante oficial dos botecos de Itaparica.

Não o idolatrava e nem o li muito, acompanhei sua obra de longe. Mas adorava seu culto à palavra. Na condição de ex-seminarista (que acredito que o foi), gostava de burilar o texto com regionalismos, sintaxe tortuosa e palavras eruditas, antigas, arcaicas. Um amante da língua (a ambiguidade fica a cargo do leitor, já que ele nunca negou a luxúria em seus escritos). Ainda assim, Ubaldo cultuava e cultivava a inculta e bela, mais ou menos como no poema de Bilac, em que o poeta, no "aconchego do claustro", se debate perseguindo as mil possibilidades de arranjo poético.

Também ele viverá no corpo dos textos que produziu e dos outros que traduziu, faceta importante do grande gozador com vozeirão arrastado e malemolente. Era um tradutor de primeira e, quem mais do que os tradutores, conhecem a guerra quixotesca para acertar a mão em cheio naquele termo que transmita, na língua de destino, aquilo que a de origem quis dizer.

Dele, transcrevo um trecho singelo de uma velha crônica guardada, Vida Volátil: "[...] Lembro-me de um velho porta-retratos na casa de meus pais, com uma foto em preto e branco de meu avô paterno, que ficou lá por mais de cinquenta anos. Havia algo de permanência naquela antiga moldura de madeira e no sorriso do velho, havia um certo sossego, coisas que duravam e eram guardadas 'para sempre'. No futuro, acho que não se conhecerá mais essa sensação. Os porta-retratos agora são eletrônicos e programáveis para fazer exibição de slides, mudar a foto periodicamente, tocar música e mais outras coisas. As fotos, que hoje se produzem com uma abundância inadministrável, também não são mais para ficar, nada mais é para ficar."

Amo as palavras e sinto-me triste a cada perda de um membro da tribo dos palavreiros que pensam e escrevem bonito. E gosto da metáfora da tranquilidade transmitida pela foto no porta-retratos.

O que ainda estaríamos fazendo para ficar, para permanecer? Talvez nossos textos...

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