24 de jul. de 2014

Alves e Ribeiro

Em meus sagrados, amados e privilegiados tempos de estudante na Unicamp, eu idolatrava Rubem Alves. Eu e mais um monte de gente, claro. Ele dizia coisas bonitas, que faziam pensar e faziam sonhar; era uma prosa simples com significados profundos. Para quem estava começando a descobrir o amor pelo pensar, pela reflexão sobre o que move as pessoas e(m) suas relações, pelo sentido da vida, com o perdão da expressão já tão gasta...

Uma das coisas que Alves escreveu foi que muitas pessoas se apaixonam mais pelo amor do que pela pessoa amada. Apaixonados por amar, sem enxergar tão bem o objeto do amor. Também houve a história do pássaro, alegoria do ser amado, o qual não poderia ser mantido próximo em uma gaiola fechada, como propriedade. A gaiola precisaria estar sempre com a portinha aberta para que o pássaro, mesmo sabendo da liberdade de poder voar para longe, ali permanecesse por pura vontade. O pássaro deveria estar ao lado porque queria e não porque não tinha outra alternativa...

Depois de uns anos, acho que já formada, "briguei" com Rubem Alves. Ele publicou uma crônica no jornal de Campinas exaltando o prazer e as delícias de poder amar sem estar preso a um casamento. Acredito que mencionava um novo amor e ontem, ao deparar com a notícia de que morreu casado com sua única esposa, me espantei. A crônica fazia a apologia de uma paixão tão pueril e irresponsável que só poderia significar o fim do casamento.

Mais tempo passou, ficamos mais velhos, Alves e eu. E o tempo, senhor de todas as coisas, felizmente nos permite relativizar muitas dessas coisas...

Há poucos meses, assistindo a uma entrevista com Alves na GloboNews, reconciliei-me com o professor. Apesar de ele ter especulado um tanto, de ter "cometido" vaidades e de ter produzido umas historinhas fáceis de vender e assimilar, naquela ocasião, já passados anos das minhas convicções juvenis, identifiquei nele a alma genuína dos pensadores e educadores, pessoas que querem deixar algo, continuar vivendo por meio de suas palavras.

Resgatei a visão do professor e pensador, que disse: "Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim affetare, quer dizer 'ir atrás'. O 'afeto' é o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o 'Eros' platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado." (in: Lições do velho professor, p. 98).

Num texto intitulado Ensinando a tristeza (oh, que heresia moderna!), ele homenageia uma paranaense que é sublime descoberta desde que habito as plagas de lá: "Fui apresentado à poesia de Helena Kolody poucas semanas atrás. Foi uma descoberta que me trouxe alegria. Não porque seus poemas sejam alegres. Todos eles têm uma pitada de tristeza. A Adélia [Prado] sabe que o que é bonito enche os olhos d'água. A beleza vem sempre misturada à tristeza. (...) Os poetas me entendem. A poesia nasce da tristeza. 'Mas eu fico triste como um pôr do sol quando esfria no fundo da planície e se sente a noite entrada como uma borboleta pela janela', escreve Alberto Caeiro. E conclui: 'Mas minha tristeza é sossego porque é natural e justa e é o que deve estar na alma...'. Tristeza natural e justa, que deve estar na alma!
[...]

E aí se foi o João Ubaldo também. Escrachado, debochado, um tanto devasso e representante oficial dos botecos de Itaparica.

Não o idolatrava e nem o li muito, acompanhei sua obra de longe. Mas adorava seu culto à palavra. Na condição de ex-seminarista (que acredito que o foi), gostava de burilar o texto com regionalismos, sintaxe tortuosa e palavras eruditas, antigas, arcaicas. Um amante da língua (a ambiguidade fica a cargo do leitor, já que ele nunca negou a luxúria em seus escritos). Ainda assim, Ubaldo cultuava e cultivava a inculta e bela, mais ou menos como no poema de Bilac, em que o poeta, no "aconchego do claustro", se debate perseguindo as mil possibilidades de arranjo poético.

Também ele viverá no corpo dos textos que produziu e dos outros que traduziu, faceta importante do grande gozador com vozeirão arrastado e malemolente. Era um tradutor de primeira e, quem mais do que os tradutores, conhecem a guerra quixotesca para acertar a mão em cheio naquele termo que transmita, na língua de destino, aquilo que a de origem quis dizer.

Dele, transcrevo um trecho singelo de uma velha crônica guardada, Vida Volátil: "[...] Lembro-me de um velho porta-retratos na casa de meus pais, com uma foto em preto e branco de meu avô paterno, que ficou lá por mais de cinquenta anos. Havia algo de permanência naquela antiga moldura de madeira e no sorriso do velho, havia um certo sossego, coisas que duravam e eram guardadas 'para sempre'. No futuro, acho que não se conhecerá mais essa sensação. Os porta-retratos agora são eletrônicos e programáveis para fazer exibição de slides, mudar a foto periodicamente, tocar música e mais outras coisas. As fotos, que hoje se produzem com uma abundância inadministrável, também não são mais para ficar, nada mais é para ficar."

Amo as palavras e sinto-me triste a cada perda de um membro da tribo dos palavreiros que pensam e escrevem bonito. E gosto da metáfora da tranquilidade transmitida pela foto no porta-retratos.

O que ainda estaríamos fazendo para ficar, para permanecer? Talvez nossos textos...

29 de dez. de 2013

North Pole Marathon 2013 (Official Video)



Aos leitores conhecidos e desconhecidos do meu tímido espaço viking, o link da North Pole Marathon, brincadeira para gente grande e e disposta a encarar muito de perto os limites: do próprio corpo, da mente, da resiliência, num cenário cruel, sim, porém de extrema beleza / beleza extrema! 
Natureza em sua expressão mais grandiosa, primal e  verdadeira.

Ekte nordisk natur!
HEIA NORGE, HEIA NORD POLEN!

25 de nov. de 2013

Perguntas para Curitiba

Ah, Curitiba... Por que não paras de chover?
Se nos desses uma trégua com teu frio e tuas lágrimas, iríamos mais aos parques e praças tão maravilhosos e bem cuidados...
Talvez sorríssemos mais e ficássemos menos acabrunhados, feição esta que combina com o cinza que insistes em nos impor até quase a chegada do Natal...
Ah, Curitiba... Pare de chover!
Deixe nossas crianças se divertirem ao sol, suar com o calor, correr no pátio da escola com seus amigos, naquela prorrogação de final de aula!
Ah, Curitiba... As elegantes araucárias são tão lindas! E contra o céu azul compõem um visual de extrema beleza; permita-nos contemplá-las mais assim!
Ah, Curitiba de Leminski, Helena Kolody e Poty... Por que não paras de chover?!
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23 de out. de 2013

Morangos Silvestres

Não amigos, não temam: o título desta postagem não nos levará a uma densa discussão sobre o denso filme do denso cineasta vizinho, o sueco Ingmar Bergman. Apesar de adorar essa coisa lúgubre e totalmente introspectiva dos nórdicos (ainda esses dias revi Cenas de um Casamento, de 1973, mais atual do que nunca, que se se diga...), o mote desse texto é bem mais prosaico: o bucólico e talvez extemporâneo ritual veranil de coleta de morangos e outras frutas silvestres (bom, o título do filme, sim, tem a ver com minhas reminiscências).

É realmente curioso: no causticante verão de 17º da linda Noruega (e possivelmente na Suécia de Bergman não é diferente), um dos programas mais populares e divertidos são as singelas caminhadas morro acima, morro abaixo, morro acima, morro abaixo e assim sucessivamente, em busca de arbustos contendo as deliciosas e desejadas frutinhas. Tudo é festa: o sobe-e-desce (daí a forma invejável e as pernas fortes daqueles nórdicos danados: vigorosos, saudáveis e esbeltos - andar, andar - e esquiar - sempre!), a sherlockiana procura por morangos, amoras, framboesas, molte e tyttebaer (a blueberry), azeda de doer e amada por eles, sobretudo sob a forma de geleia.

Quando, incauta, arrojada e juvenil, desembarquei naquelas terras distantes e então desconhecidas e fui convidada para um desses programas, confesso, pensei cá comigo: "catar frutinhas; será que não há nada mais interessante para fazer???".

Mas, contudo, todavia, entretanto, visto que minha ânsia de descobrir e interagir com aquela cultura tão diferente da minha era gigante e genuína, talvez já imbuída do espírito desbravador viking, não me fiz de rogada, nem de desanimada: à coleta (tipo "eu vou, eu vou, catar frutinhas eu vou...").

A bem da verdade, mais me cansei, novata na luta com e contra os arbustos e as frutinhas, do que propriamente curti o programa. Corria tentando alcançar os lépidos vikings, com suas pernas fortes e mãos treinadas para o plukke cá, plukke lá.

E, depois, bem à moda desse povo aparentemente caladão, mas afetuoso, dado às coisas simples da vida e devoto da sagrada e benfazeja luz do verão, acontece a mais deliciosa confraternização: na cozinha, final de tarde, sol ainda visível, um vinho branco gelado, um café ou mesmo um chá, e o banquete da retrospectiva do dia, alimentado pela rubra coleta. São morangos comidos inteiros, geleias preparadas ali, na hora, e experimentadas com lamber de dedos, crianças com bocas roxas correndo pela casa, vikings apaziguados pelo calor e pelo contato com a natureza, característica que, a meu ver, é a que melhor os define. São duendes disfarçados de gente, povo da floresta e dos sutis mistérios do Norte. Dias silvestres, de doer pernas, cheiro de morango, amora, framboesa (excluo a molte, não fede nem cheira), rubros enfim.

A Escandinávia reserva muitas surpresas... Produziu Bergman, o dramaturgo Ibsen, os malucos experimentais do Dogma 95, o dançante A-Ha dos anos 80 (não façamos aqui escalas de comparação intelectual...), tanta coisa que vale a pena... A longa e lenta escuridão que possivelmente alimenta a melancolia (olha aí o Von Trier) casa-se com o sol da meia-noite, que traz a luz que produz morangos silvestres, amores loucos e livres e outras frutinhas mais.

Ah, sábio Leminski: haja hoje para tanto ontem!

*plukke: colher, catar, pegar.

10 de out. de 2013

Lançamento de livro

Leitores do blog em gestação permanente: minha amiga Fernanda se lança como autora de literatura infantil e eu me orgulho de ter feito parte da consultoria editorial e revisão da obra, que também vem sendo gestada há tempos! Venham conhecer o trabalho dela e do Departamento de Educação e Cultura do maravilhoso Hospital Pequeno Príncipe!

 
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13 de set. de 2013

HOMENAGEM A ISTAMBUL

Este blog nasceu com o desejo de ser um espaço de cultura nórdica, mas os Outros escritos acabaram se sobrepondo...
Bom, os vikings, antes bárbaros crudelos, hoje são democráticos e generosos (em sua grande maioria, não generalizemos). Sendo assim, acredito que um texto sobre Istambul não vá ofendê-los! Na verdade, acho que neste blog cabe qualquer tipo de escrito que venha da inspiração. Parafraseando Pessoa, tudo vale a pena, se a vontade de escrever não é pequena!

AO BÓSFORO...

Há um tempo que o Médio Oriente me fascina, mais precisamente, desde que comecei a ler sobre a escrita corânica, que é tida pelos islâmicos/muçulmanos como via de comunicação direta com Deus e cujo encanto das formas e arabescos visa simbolizar esta relação com o sagrado. A suprema beleza contida e expressa nos caligramas, textos poéticos escritos em forma de ornamento, por mãos hábeis e delicadas, muitas vezes com tintas de ouro ou misturas secretas, revelam a grandeza de uma cultura que, infelizmente, muito se desgastou com o tempo, com as guerras, com as inúteis e desumanas querelas étnicas...
Também no livro O segredo do calígrafo (ambientado na Damasco dos anos 1950), encontrei belíssimos relatos sobre essa arte da caligrafia, tão desconhecida de nós, ocidentais afobados e utilitaristas, enlouquecidos para que tudo tenha uma finalidade prática e rápida; tristemente negligentes com a sacralidade da arte pela arte, da beleza pela beleza, do detalhismo e do culto à ornamentação como forma de reverência ao divino, entendido a critério do freguês.
E meu amor por essas artes estendeu-se para as plagas orientais e desembocou na mítica Istambul (antiga Constantinopla, capital do Império Otomano), quando, em 2009, li o livro de mesmo nome, de Orhan Pamuk. A Turquia é um país laico, apesar de a maioria da população ser muçulmana, e tem localização geográfica particular – situa-se entre dois continentes – contando com duas capitais, a política, Ancara, e a histórica, Istambul.
Para o meu arrebatamento definitivo, contribuiu o filme O Tempero da Vida, que só pode ser degustado assistindo-se; nenhuma descrição daria conta do cheiro das especiarias, do burburinho das ruas e da singela relação de amor que nasce entre um homem e uma mulher ainda na infância, brincando entre montes de temperos e especiarias num empório tipicamente regional.
Gostaria muito de contemplar o Bósforo, por onde circulam os barcos e a fumaça que expelem, tão apreciados por Pamuk. Em suas palavras, “quando a balsa e o vento mudam ligeiramente de posição, a fumaça que sai da chaminé começa a contorcer-se e descrever curvas acima do Bósforo, lembrando a escrita árabe.” Quisera poder flanar pelas ruelas pitorescas e entrar em lojinhas, armarinhos, ateliês e o que mais houver para me inebriar com a cultura de ouro que ainda sobrevive por lá, mesmo com as agruras do velho tempo.
Gostaria muito, enfim, de ver o Bósforo assim, como o relata Pamuk, referindo-se à sua infância na cidade:
“[...] Em pouco tempo, lancei-me em novas e ousadas experiências. Toda manhã, depois que meu primo saía de casa para o liceu alemão, eu abria um dos seus livros imensos, grossos, lindos (era uma edição Brockhaus, acho) e, sentado a uma mesa, copiava as suas linhas. Como eu não sabia alemão, e nem mesmo ler, fazia aquilo sem nenhuma compreensão, desenhando, por assim dizer, a prosa que via à minha frente. Desenhava uma cópia exata de cada linha e de cada frase. Depois que terminava uma palavra que contivesse uma das letras góticas mais difíceis (um g ou um k), fazia o mesmo que os miniaturistas sefévidas depois de desenharem uma a uma os milhares de folhas de um plátano imenso: descansava os meus olhos contemplando os espaços entre os edifícios, os terrenos baldios e as ruas que desciam na direção do mar, e seguindo os barcos que passavam pelo Bósforo nas duas direções.”


8 de jul. de 2013

Das coisas que se quebram e que nenhuma cola pode reparar...


Há momentos, lugares, pessoas, afetos e objetos que, para quem olha de fora, não passam de momentos, lugares, pessoas, afetos, objetos. Só conhece o que eles representam quem está do lado de dentro: o misterioso observador interno e sua rede de associações, emaranhados simbólicos cheios de tramas, nós, fios e urdiduras. Aquilo que habita nossa morada mais recôndita jamais poderá ser contemplado por um observador externo em sua transparência; essa porta é trancada, cabe somente a alguns mais perspicazes escutar por detrás da porta e tentar ouvir algo que dê à trama algum sentido.
Há muito que se quebra, que se perde, que se estilhaça, desfazendo-se em mil pedaços, os quais estarão para sempre apartados do conjunto original que um dia compuseram. Às vezes os pedaços são poucos, às vezes muitos, porém ficarão para sempre ali, no chão, na irreversível condição de elementos separados do que antes fora um todo.
Um vaso quebrado será para sempre um vaso quebrado, mesmo que nele só haja uma lasca quase imperceptível. É por isso que a metáfora/provérbio é tão representativa e cabe/cala na boca de todos – “é vaso quebrado”.
E a cola está e estará por ser encontrada desde e para sempre, afinal, teria o poder curativo da reconstrução: bibelôs, chávenas de chá ornadas com flores delicadas, peças de cerâmicas herdadas de entes queridos já mortos, lugares guardados na memória em todas as suas cores; um anel de murano único e para sempre perdido.
O murano é um vidro veneziano e as peças são sempre únicas, em razão de um processo artesanal de fabricação. A combinação de cores não pode ser repetida, sequer a forma como se casam e se entrelaçam, dando à luz objetos belíssimos, plenos de singularidade. Ver um murano “ser espatifado” no chão é um espetáculo trágico, é como se aquele enlace de cores e formas rasgasse o tapete tecido por Penélope, enquanto esperava seu amado Ulisses retornar da guerra. Há muito mais do que vidro ali, muito mais. Os cacos espalhados vão além do que sonha nossa vã filosofia...
Há alguns dias perdi um anel de murano especial, especialíssimo, quase um talismã, repleto de beleza e curvas coloridas, que ornava minha mão com originalidade e graça. Foi-me presenteado por minha mãe, que soube garimpar com sensibilidade algo aparentemente tão pequeno, cuja importância era(é) incomensurável.
A gente sempre espera que tudo se mantenha íntegro, inteiro, do jeito como sempre foi. De certo modo, é ilusão necessária para que se possa seguir em frente. O que a vida vai mostrando, entretanto, e de forma sorrateira, quase cruel, é que muito pouco se mantém íntegro e quase tudo se lasca, cai no chão, desbota, embolora, quebra-se, enfim. Sábia a pueril definição de Adriana Falcão, em seu lindo e singelo Pequeno Dicionário de Palavras ao Vento:
“Dor: tudo que dá vontade de dizer ‘ai’ lá de dentro do peito, seja topada, perda, cascudo ou abandono.”

Será que um dia a gente encontra a cola?

3 de jul. de 2013

Pessoas aqui e lá...

Pessoas físicas

pessoas físicas são aquelas
que têm voz própria
donas do próprio nariz

pessoas físicas são aquelas
que falam de dentro do centro
aquilo que pensam e acreditam

pessoas físicas não falam
em nome de empresas, sindicatos,
governos, igrejas ou partidos

pessoas físicas quando falam
é porque experimentaram e viveram
aquilo que estão dizendo

pessoas físicas têm suas crenças
que a vida lhes sopra em um momento
e mudam conforme o tempo

pessoas físicas são livres
para seguir seu caminho
sempre a sabor do vento

pessoas físicas são e não são
não se querem sempre as mesmas
ovelhas do imenso rebanho

pessoas físicas são aquelas
pessoas físicas são
pessoas na contramão

CHACAL. Murundum. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 14.

11 de abr. de 2013

Poemeto

Reflexos

Teus olhos são limpos como o céu varrido pela tempestade,
Desertos como a terra depois do dilúvio,
Profundos como os abismos abertos pelos cataclismos.
É que passou por eles a Vida.
Helena Kolody

Aos que ainda não assistiram, aproveitando o mote, segue link de O segredo dos seus olhos:
http://www.youtube.com/watch?v=T-8w1HrHQYU&noredirect=1

27 de mar. de 2013

Norges best!

Nos dias de hoje, após anos de internet e de informação global e globalizada, a Noruega já não é mais um território desconhecido - enigmático até: trolls misteriosos escondidos na floresta, sol da meia-noite, ursos polares, enfim, coisas que há 20 anos, quando fui desavisadamente (e FELIZMENTE) parar naquelas plagas, eram os símbolos do país.
Hoje temos acesso ao icônico IDH campeão, às características de uma sociedade justa e verdadeiramente igualitária, o povo afável (o atirador Anders Behring foi, tristemente, ponto fora da curva e louco fanático existe em qualquer lugar...). E temos, sobretudo, acesso aos sites de natureza indescritível.
Há muitos lugares espetaculares a serem visitados e admirados ao redor do mundo, isso é verdade. Mas, puxando o codfish (bacalhau/bacalhoada é iguaria portuguesa) para a minha brasa, talvez haja pouca beleza tão singular e tão grandiosa, como se poderá ver no link em anexo.
A Noruega tem montanhas altíssimas - com picos nevados - as quais, apesar de se assemelharem aos Alpes e outras cadeias montanhosas, têm a particularidade de emoldurarem - e até sagradamente protegerem - os profundos e silenciosos fiordes. O contraste bate na alma: juntos, altura e profundidade, grandeza do espetáculo e pequeneza do ser humano, que nada mais pode fazer a não ser se emocionar e tentar se alimentar ao máximo daquele banquete imagético/natural/espiritual.
Antes de viajar para lá pela primeira vez, quando investigava sobre o país numa enciclopédia Delta Larousse impressa (sim, esse tempo existiu!!!), vi uma fotinho de uma casinha vermelha, à margem de um fiorde. Algumas informações sobre o tempo, alimentação etc., mas nada de muito significativo. Poucos dias antes da partida, sonhei se na Noruega havia sorvete... Sonho de quem revela altas preocupações de adolescente rebelde sem causa, que quer se enfiar no fim do mundo para ter uma experiência "diferente". Fui assim mesmo. Com lenço, documento e tudo de quentinho que pude encontrar para me proteger do suposto glaciar inclemente que estaria a minha espera.
As imagens dão uma boa amostra do que encontrei, além do sorvete, delicioso, por sinal (feito do puríssimo leite das super vacas subsidiadas, tratadas a pão-se-ló).
Por fim, mas não menos importante, tive o privilégio de encontrar, lá perto do Polo Norte, uma família viking hospedeira, acolhedora e maluquete da qual sou filha até hoje e que injetou em mim certo DNA nórdico, uma mutação maravilhosa!
Ainda bem que minha maior preocupação era a existência, ou não, do sorvete! Já pensaram se o meu temor fosse do frio, de trolls e de vikings chifrudos de cabelo vermelho???!!!


23 de mar. de 2013

Norsk natur!

Foto Veronica Sande - NORLA





Saramago e as oliveiras

Lindo texto!

Uma oliveira na cidade

No dia 18 de Junho passado, numa cerimónia simples, as cinzas de José Saramago foram colocadas à sombra de uma oliveira, no popular Campo das Cebolas, em Lisboa, em frente à Casa dos Bicos, histórico edifício de arquitectura civil onde ficará sediada a fundação cultural. Saramago foi um fortíssimo reflector das almas, das luzes e das sombras dos homens. Um extraordinário cidadão do mundo, amante da cidade e da cidadania plena. Com plena humanidade, na sua lápide a frase “Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia”. Deixou uma obra enorme, uma obra para o futuro com a força do passado.

À sombra de uma oliveira. Da Azinhaga, aldeia ribatejana onde nasceu. A oliveira é símbolo mediterrâneo por excelência, padrão de cultura, de riqueza, de resistência e de longevidade. Elementos também chave para uma cidade, como a muy antiga Lisboa, filha de Roma e de Atenas, ardilosamente tecida por longos séculos, por entre uma fértil e bela região envolvente, uma crescente vastidão marítima e uma população variada e disponível. E entre cristãos-velhos e judeus-novos, diversidades e uniformidades, alegrias e iniquidades.

“Lisboa ali estava, oferecida na palma da terra, agora alta de muros e casas. A barca aproou à Ribeira, fez o mestre manobra para encostar ao cais depois de ter arriado a vela, e os remadores levantaram num só movimento os remos do lado da atracação, os do outro lado harpejaram a amparar, mais um toque no leme, um cabo lançado por cima das cabeças, foi como se tivessem juntado as duas margens do rio” (in Memorial do Convento).

Este gesto de Lisboa tem um imenso significado. Pela atenta homenagem a quem ama a cidade: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro” (in Palavras para uma cidade). E Saramago regressou à cidade que amava, renovando esperanças com ela, mesmo se uma parte dela o tivesse exilado.

Pela força cultural e política da obra do homem e escritor. Uma obra em prol da cidadania. A cidade é espelho de nós próprios, como indivíduos e como colectivo. Mas tem sido colonizada por capitalismos extremos, por tecnicismos corporativos, por consumismos banalisadores de desejos. E ainda vêm tempos mais difíceis, bem se sabe. De novo, histórias de cerco à cidade. Muita cegueira, na nossa caverna. E tão necessária lucidez.

A lucidez, tal como a cidade e a cidadania – e a oliveira –, é trabalho longo e de fundo. Tanto necessita de estratégias de longo prazo como de intimidades quotidianas. Por entre a precariedade laboral, as hipotecas e os hipermercados, os desprezos e as esquizofrenias mediatico-políticas, os cidadãos das cidades futuras serão mais cosmopolitas e mais exigentes. Mais empenhados e dispostos a fazerem o gesto, a dizerem a palavra: “os vivos ainda têm tempo (...) para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que gesto, que palavra, Não sei, morre-se de não a ter dito, morre-se de não o ter feito” (in O ano da morte de Ricardo Reis).

Para que as cidades sejam mais vivas, justas e criativas. Para que sejam cidades onde se conjuguem diferenças e compromissos, e onde se construam projectos. Para que sejam cidades bem governadas. E para que cada um dos seus lugares possa ser lugar de desejo e de realização. De Liberdade.

“Sabemos muito mais do que julgamos, podemos muito mais do que imaginamos”. Pois “somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não” (in entrevistas).

E pela postura de uma cidade que, assumidamente, defende princípios e valores. Uma cidade verdadeiramente política. Não há política sem cidade. E vice-versa. Cada cidade fará as suas escolhas, por entre um futuro fragmentado, receoso e insustentável, ou um futuro mais inclusivo, plural e cosmopolita. E “Lisboa tem-se transformado nos últimos anos, foi capaz de acordar na consciência dos seus cidadãos o renovo de forças que a arrancou do marasmo em que caíra” (in Palavras para uma cidade). Prossigamos, assim, com o trabalho longo de construir comunidade, com a força e a frescura de uma oliveira.

João Seixas
Geógrafo
In Público, 27 de Junho de 2011

Bolo de noiva

Ontem à tarde fui a uma confeitaria sugestivamente chamada “fada formiga” (assim, com minúsculas). Eu havia saído de uma sessão hard core de análise e nada me parecia melhor, naquele instante, do que um afago gastronômico, o qual viria a ser um delicioso bolo de chocolate. Que mulher não recorre a isso quando o ego e tudo mais está fora do lugar, de sintonia, dos trilhos, enfim...
Eu sei: há outros afagos (alguns até bem menos calóricos), mas um chocolatinho cai bem; muito bem.
O local é de fada mesmo e tudo lembra Paris, de onde vêm os pequenos e graciosos objetos de decoração, várias peças de louça, a inspiração doceira e as cores das paredes, nos tons de alegres macarrons! Móveis de demolição, coisinhas e cacarecos empilhados naquela desorganização francesa deliciosa, um lugarzinho que vale mesmo a pena. E ainda por cima situa-se à rua Machado de Assis; voilà, um toque de literatura para completar o cenário pleno de referências reconfortantes.
Não sendo suficiente o bolo maravilhoso, a vista de uma araucária e a ambientação que me levou ao lugar que eu talvez mais ame no mundo [que conheço], começo a observar uma sala anexa à doceria, cuja vitrine já havia visto e que já despertara minha curiosidade incessante. É um ateliê de vestidos de noiva.
Inspirado no mesmo clima parisiense da “fada” e toques de brechó, ali existia outro recanto, repleto de charmosos vestidos retrô, bordados mimosos e rendas de belíssimos rococós (compradas em Buenos Aires, como me contou a dona depois), pendurados em um armário antigo, com jeito de cristaleira. E era mesmo uma cristaleira, só que de vestidos, lindos como bibelôs de cristal.
Vestes para noivas sonhadoras, que cultuam o ideal do casamento rendado, com fita na cintura, cabelos delicadamente ornados e aquele ar nostálgico que às vezes nos faz acreditar que, no passado, tudo era melhor, mais bonito, mais simples, mais organizado, sei lá... Vestidos delicados capazes de botar ordem no trem descarrilado que me levou ao bolo de chocolate.
E foi então que me toquei de outro afago, além da iguaria açucarada: o amor. Meus olhos avistaram na cristaleira das noivas o vestido mais lindo do mundo, forro de cetim coberto pela mais romântica renda bege, alças largas arrematadas igualmente por duas fitas de cetim e um recatado, mas não menos sugestivo, decote em V. Peguei-o do cabide e encostei-o junto ao corpo, no desejo intenso de ser noiva outra vez e desfrutar do deleite da casadoira apaixonada, que se prepara para o amado, como se a ele fosse se consagrar, na secular liturgia do “felizes para sempre”. O vestido fora encomendado por uma noiva que desmarcou o casamento na última hora e, por isso, restou inacabado na cristaleira, quase que à espera de alguém.
Envolta nele e no limite da racionalidade, quase pedi para a designer de casamentos (sim, este é o nome da profissional agora) ajustá-lo ao meu corpo, ora menos casadoiro e mais maternal. Era quase inevitável resistir a tanto afago, tanta possibilidade de amor a ser selado, expressa num vestido.
Mas eis que a prudente e sábia varinha da fada vizinha tocou o recinto e pude assim ser resgatada, trazida de volta à razão com a chegada de uma cliente. E desse modo, eu, a noiva encantada, agarrada ao vestido da noiva indecisa, fui interrompida em meu devaneio por uma noiva de verdade.
Que sorte! Não fosse aquela linda mocinha de olhos brilhantes e ar delicado, teria saído da doçaria artesanal, como a “fada” se define, com mais coisas além da fatia de bolo que levava para meu filho e do pacotinho de biscoitos amanteigados que levava para minha filha... A vida sabe o que faz!


Niemeyer...


Amigos,
uma leva de grandes mentes está indo embora, ou a humanidade começa a se reinventar - ou a humanidade começa a se reinventar...
A despeito das críticas a respeito do pensamento inflexível, da arquitetura grandiosa, de linhas retas, que tantos (desavisados) denominaram "cosmética"; apesar dos enormes vãos para a circulação do ar - e das pessoas, das ideias e das sensações que esses espaços provocam; apesar da intriga alimentada por alguns com relação a Lucio Costa, que teria sido o verdadeiro mentor da concepção de Brasília (e o foi mesmo, sobretudo como urbanista), sendo o grande arquiteto apenas o decorador que lá baixou com seus monumentos frios e desconectados de um aconchego barroco sonhado pela maioria apegada ao tradicionalismo das formas; apesar da cabeça dura...
Apesar de...
Niemeyer foi um gigante, como seus lindos e inusitados monumentos. Foi uma mente genial, teve a verve afiada e o coração cheio de ideais, que se desdobravam em projetos inimitáveis, tão equivocadamente qualificados como frios (não seriam arejados???) e impessoais (não seriam tão corajosamente pessoais que assustavam as gentes????).
Apesar de...
A ele, todas as minhas singelas homenagens e, confesso, algumas lágrimas, que gostaria de hoje poder verter na capital federal, onde ele expressa tanto do seu talento, onde felizmente vivi por um breve período. Um gênio, quisera pudéssemos produzir mais desses de quando em quando.